CONVIDADO (IN)VOLUNTÁRIO
António Lobo Antunes
A propósito de ter entregado o seu cartão da Ordem dos Médicos:
Adeus
"Demiti-me hoje da Ordem dos Médicos e devolvi a medalha de mérito que há anos me pediram que aceitasse e me agradeceram com elegância ter aceite. O meu pai costumava citar uma frase de Herculano a propósito de Garrett, dois escritores que muito admiro: “por meia dúzia de moedas o Garrett é capaz de todas as porcarias menos de uma frase mal escrita.” E recebi uma carta mal escrita, que talvez pretendesse ser irónica e era apenas pateta e com dois erros de português, que me obrigou, naturalmente, a esta tomada de posição que, embora não faça Medicina há muitos anos, me entristeceu. Entristeceu-me porque julgo ter sido um membro honesto daquela que considero ser a mais bela das profissões quando praticada com honradez e humildade. Eu venho, pelo menos há quatro gerações, de uma família de médicos e de todos eles me orgulho, desde o meu bisavô, os meus tios-avôs, o meu pai, que tanto amava a Medicina, dois dos meus irmãos, uma das minhas filhas, duas sobrinhas. Tive mestres excelentes, alguns fora do comum, colegas de superior qualidade, amigos que dignificam a profissão, internos competentes que comigo trabalharam e a quem julgo ter ensinado o pouco que sabia. Claro que não atingi o brilho da maior parte deles mas estou seguro da minha dedicação às pessoas que sofriam e de haver lutado, durante anos, pelo bem-estar de quem me coube ocupar-me. Falhei seguramente em certos casos. Noutros julgo que logrei mais do que imaginava. O saldo não se me afigura negativo. Não me atrevo a comparar-me com o meu querido irmão João, com o meu pai, com o meu tio Pedro d’Almeida Lima: fui apenas um clínico sério que partiu de mãos limpas. Desejo do coração que a minha filha e as minhas sobrinhas cheguem mais longe do que eu, como sou consciente que amigos meus o fazem, como, por exemplo, dois a quem devo a vida: o Professor Henrique Bicha Castelo, grande cirurgião, e o Professor Luís Costa, admirável clínico, que sabem do afecto e do respeito que por eles tenho. Se continuo aqui o mérito é seu. Um simples episódio que não esqueço, que não esquecerei nunca: estava na maca, esperando entrar na sala de operações para uma intervenção melindrosa, quando senti que me davam a mão: olhei e era o Professor Henrique Bicha Castelo que me agarrava os dedos e assim ficou até a anestesia me levar para longe. Henrique, juro-te pela minha mãe que nunca me achei tão acompanhado e não calculas a infinita gratidão que existe em mim.
– Meu querido
disseste tu
– Meu querido
e acredita, peço-te, que sou bem consciente de quanto eu estar ali te fez sofrer. E, no entanto, lutaste por mim com imensa coragem e aqui estou a escrever-te. Luís, eu devo-lhe imenso. O João entende que o mais horrível defeito que um homem pode ter é a ingratidão. A minha gratidão por si é imensa, e a sua ternura, cheia de pudor, comove-me sempre. E aqui estão duas pessoas de uma grandeza de alma que infelizmente não possuo. A Medicina deu-me coisas destas. Se um doente, o que não acredito, tivesse tido para mim o que tenho por vocês a minha vida quedar-se-ia justificada. Invejo-os e amo-vos. Agora, que já nem médico sou, resta-me exprimir o meu profundo amor pelos meus mestres. O Professor Eduardo Luís Cortesão, que tanto gostava de mim e, se fui um especialista aceitável, a ele o devo. Não esqueço, Eddie, o tempo que passei em sua casa, na Praia da Luz, a escrever Os Cus de Judas, que lhe lia, à Marie-Claire e a si, depois do jantar, no terraço, à medida que o ia compondo, como não esqueço o que da nossa profissão me ensinou, com uma enorme paciência e tolerância para com o meu mau feitio, os meus caprichos, as minhas iras. Sempre me tratou como seu filho. Sempre me perdoou tudo. Sempre me compreendeu. Sempre gostou de mim para além do que eu merecia, para além do que eu valia. Posso ser um grande escritor mas, como pessoa, deixo bastante a desejar. E você, Eddie, achava que não. Como eu gostava, meu Deus, de o abraçar agora. Na minha memória, na memória de tantos, nunca desaparecerá. De muitos outros médicos devia falar, mas isto é só uma pequena crónica sem pretensões, e todos merecem melhor do que isso. Tenho tanta vaidade em ser vosso colega, vosso colega não, daqui em diante sou apenas o senhor António Lobo Antunes, todo coberto de condecorações, prémios, honrarias, e de que serve isso, ao passo que vocês são Médicos. E tenho de curvar-me, com humilde respeito, diante da vossa profissão. Um escritor não cura ninguém salvo, talvez, a si mesmo. O sucesso torna-nos humildes. Faulkner: “descobri que escrever é uma coisa tremendamente bela. Faz-nos erguer sobre as patas de trás e projetar uma enorme sombra”, que me apetece glosar assim: “descobri que ser médico é uma tremendamente bela coisa. Faz-nos agarrar na mão de um infeliz que sofre e ajuda-lo a viver”. Qual destes dois feitos é o mais importante? De mim ficarão papéis. De vocês pessoas. É necessário perguntar qual das actividades é a mais importante? Quando lia Os Cus de Judas, à noite, no terraço da Praia da Luz, o Eddie dizia: “Isto é um momento único, Marie-Claire”. E qual momento único, meu Deus? Quando somos gente de facto estamos condenados a entender-nos. E o que vale tudo o resto ao lado disso? "
ALA