Thursday, May 17, 2012

A trapeira do Job


Isto que eu vou dizer vai parecer ridículo a muita gente.

Mas houve um tempo em que as pessoas se lembravam, ainda, da época da infância, da primeira caneta de tinta-permanente, da primeira bicicleta, da idade adulta, das vezes em que se comia fora, do primeiro frigorífico e do primeiro televisor, do primeiro rádio, de quando tinham ido ao estrangeiro.
Houve um tempo em que, nos lares, se aproveitava para a refeição seguinte o sobejante da refeição anterior, em que, com ovos mexidos e a carne ou peixe restante, se fazia "roupa velha". Tempos em que as camisas iam a mudar o colarinho e os punhos do avesso, assim como os casacos, e se tingia a roupa usada, tempos em que se punham meias-solas com protectores. Tempos em que ao mudar-se de sala se apagava a luz, tempos em que se guardava o "fatinho de ver a Deus e à sua Joana".
E não era só no Portugal da mesquinhez salazarista. Na Inglaterra dos Lordes, na França dos Luíses, a regra era esta. Em 1945 passava-se fome na Europa, a guerra matara milhões e arrasara tudo quanto a selvajaria humana pode arrasar.
Houve tempos em que se produzia o que se comia e se exportava. Em que o País tinha uma frota de marinha mercante, fábricas, vinhas, searas.
Veio depois o admirável mundo novo do crédito. Os novos pais tinham como filhos uns pivetes tiranos, exigindo malcriadamente o último modelo de mil e um gadgets e seus consumíveis, porque os filhos dos outros também tinham. Pais que se enforcavam por carrões de brutal cilindrada para os encravarem no lodo do trânsito e mostrarem que tinham aquela extensão motorizada da sua potência genital. Passou a ser tempo de gente em que era questão de pedigree viver no condomínio fechado, e sobretudo dizê-lo, em que luxuosas revistas instigavam em couché os feios a serem bonitos, à conta de spas e de marcas, assim se visse a etiqueta, em que a beautiful people era o símbolo de status como a língua nos cães para a sua raça.
Foram anos em que o Campo se tornou num imenso ressort de Turismo de Habitação, as cidades uma festa permanente, entre o coktail party e a rave. Houve quem pensasse até que um dia os Serviços seriam o único emprego futuro ou com futuro.
O país que produzia o que comíamos ficou para os labregos dos pais e primos parolos, de quem os citadinos se envergonhavam, salvo quando regressavam à cidade dos fins de semana com a mala do carro atulhada do que não lhes custara a cavar e às vezes nem obrigado.
O país que produzia o que se podia transaccionar, esse, ficou com o operariado da ferrugem, empacotados como gado em dormitórios, e que os víamos chegar mortos de sono logo à hora de acordarem, as casas verdadeiras bombas-relógio de raiva contida, descarregada nos cônjuges, nos filhos, na idiotização que a TV tornou negócio.
Sob o oásis dos edifícios em vidro, miragem de cristal, vivia o mundo subterrâneo de quantos aguentaram isto enquanto puderam, a sub-gente. Os intelectuais burgueses teorizavam, ganzados de alucinação, que o conceito de classes sociais tinha desaparecido. A teoria geral dos sistemas supunha que o real era apenas uma noção, a teoria da informação substituía os cavalos-força da maquinaria pelos megabytes de RAM da computação universal. Um dia os computadores tudo fariam, o Ser-Humano tornava-se um acidente no barro de um oleiro velho e tresloucado que, caído do Céu, morrera pregado a dois paus, e que julgava chamar-se Deus, confundindo-se com o seu filho e mais uma trinitária pomba.
Às tantas, os da cidade começaram a notar que não havia portugueses a servir à mesa, porque estávamos a importar brasileiros, que não havia portugueses nas obras, porque estávamos a importar negros e eslavos.
A chegada das lojas-dos-trezentos já era alarme de que se estava a viver de pexibeque, mas a folia continuava. A essas sucedeu a vaga das lojas chinesas, porque já só havia para comprar «balato». Mas o festim prosseguia e à sexta-feira as filas de trânsito em Lisboa eram o caos e até ao dia quinze os táxis não tinham mãos a medir.
Fora disto, os ricos, os muito ricos, viram chegar os novos ricos. O ganhão alentejano viu sumir o velho latifundário absentista pelo novo turista absentista com o mesmo monte mais a piscina e seus amigos, intelectuais, claro, e sempre pela reforma agrária, e vai um uísque de malte, sempre ao lado do povo, e já leu o New Yorker?
A agiotagem financeira, essa, ululava. Viviam do tempo, exploravam o tempo, do tempo que só ao tal Deus pertencia, mas, esse, Nietzsche encontrara-o morto em Auschwitz. Veio o crédito ao consumo, a Conta-Ordenado, veio tudo quanto pudesse ser o ter sem pagar. Porque nenhum Banco quer que lhe devolvam o capital mutuado, quer é esticar ao máximo o lucro que esse capital rende.
Aguilhoando pela publicidade enganosa os bois que somos nós todos, os Bancos instigavam à compra, ao leasing, ao renting, ao seja como for desde que tenha e já, ao cartão, ao descoberto-autorizado.
Tudo quanto era vedeta deu a cara, sendo actor, as pernas, sendo futebolista, ou o que vocês sabem, sendo o que vocês adivinham, para aconselhar-nos a ir àquele Balcão bancário buscar dinheiro, vendermos-nos ao dinheiro, enforcarmos-nos na figueira infernal do dinheiro. Satanás ria. O Inferno começava na terra.
Claro que os da política do poder, que vivem no pau de sebo perpétuo do fazer arrear, puxando-os pelos fundilhos, quantos treparam para o poder, querem a canalha contente. E o circo do consumo, a palhaçada do crédito servia-os. Com isso comprávamos os plasmas mamutes onde eles vendiam à noite propaganda governamental e, nos intervalos, imbelicidades e telefofocadas, que entre a oligofrenia e a debilidade mental a diferença é nula. E, contentes, cretinamente contentinhos, os portugueses tinham como tema de conversa a telenovela da noite, o jogo de futebol do dia e da noite e os comentários políticos dos "analistas" que poupavam os nossos miolos de pensarem, pensando por nós.
Estamos nisto.
Este fim-de-semana a Grécia pode cair. Com ela a Europa.
Que interessa? O Império Romano já caiu também e o mundo não acabou. Nessa altura, em Bizâncio, discutia-se o sexo dos anjos. Talvez porque Deus se tivesse distraído com a questão teológica, talvez porque o Diabo tenha ganho aos dados a alma do pobre Job na sua trapeira. O Job que somos grande parte de nós.

José António Barreiros, advogado

Sunday, May 13, 2012

Triste realidade


O Engraxanço e o Culambismo Português

Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador mais poderoso do que ele.
Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é identificá-los, lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia.
Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como «engraxanço». Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os alunos engraxavam os professores,os jornalistas engraxavam os ministros, as donas de casa engraxavam os médicos da caixa, etc... Mesmo assim, eram raros os portugueses com feitio para passar graxa. Havia poucos engraxadores. Diga-se porém, em abono da verdade, que os poucos que havia engraxavam imenso.
Nesse tempo, «engraxar» era uma actividade socialmente menosprezada. O menino que engraxasse a professora tinha de enfrentar depois o escárnio da turma. O colunista que tecesse um grande elogio ao Presidente do Conselho era ostracizado pelos colegas.Ninguém gostava de um engraxador.

Hoje tudo isso mudou. O engraxanço evoluiu ao ponto de tornar-se irreconhecível. Foi-se subindo na escala de subserviência, dos sapatos até ao cu. O engraxador foi promovido a lambe-botas e o lambe-botas a lambe-cu. Não é preciso realçar a diferença, em termos de subordinação hierárquica e flexibilidade de movimentos, entre engraxar uns sapatos e lamber um cu. Para fazer face à crescente popularidade do desporto, importaram-se dos Estados Unidos, campeão do mundo na modalidade, as regras e os estatutos da American Federation of Ass-licking and Brown-nosing.Os praticantes portugueses puderam assim esquecer os tempos amadores do engraxanço e aperfeiçoarem-se no desenvolvimento profissional do Culambismo.

(...) Tudo isto teria graça se os culambistas portugueses fossem tão mal tratados e sucedidos como os engraxadores de outrora. O pior é que a nossa sociedade não só aceita o culambismo como forma prática de subir na vida, como começa a exigi-lo como habilitação profissional. O culambismo compensa. Sobreviver sem um mínimo de conhecimentos de culambismo é hoje tão difícil como vencer na vida sem saber falar inglês.

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'

Saturday, May 12, 2012

Music was my first love...


A melhor versão de sempre de "City of New Orleans", o verdadeiro hino da América!

Por falar em aumentos...

EMPREGADA PEDINDO AUMENTO:
- Madame, estou precisando de um aumento.
A senhora muito chateada pergunta:
- Maria, porque você acha que merece um
aumento? Você só está aqui há 3 meses.
... - Madame, há três razões porque eu acho que
mereço um aumento.. Em primeiro lugar, eu
passo as roupas melhor do que a senhora.
- Quem foi que disse isso?
- Foi o patrão quem disse. Em segundo lugar,
eu cozinho melhor do que a senhora.
- Que absurdo, quem disse isso?
- Foi o patrão quem disse. Em terceiro lugar
eu sou melhor na cama que a senhora.
- Filha da Puta. Foi meu marido quem disse
isso também?
- Não madame, foi o motorista...
- E... QUANTO VOCÊ QUER DE AUMENTO?...

Thursday, May 10, 2012

Fala do Homem Nascido

Venho da terra assombrada,
do ventre de minha mãe;
não pretendo roubar nada
... nem fazer mal a ninguém.

Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.

Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.
Com licença! Com licença!
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo;
não tenho tempo a perder.

Minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me molestem,
correntes que me detenham.

Quero eu e a Natureza,
que a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as venceu.

Com licença! Com licença!
Que a barca se fez ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei-de passar.
Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.

António Gedeão, in 'Teatro do Mundo'

Tuesday, May 08, 2012

Na "mouche"

"A austeridade tal como a definem não tem sentido. Pode haver uma certa austeridade, sim, mas devia começar no governo. A austeridade deveria começar no governo e não nas pessoas e, sobretudo, não nos pobres e nos desempregados."

Mário Soares, em entrevista ao jornal i